quinta-feira, 23 de setembro de 2010

TEXTO nr. 4 – Inverno de 2010

RELATO DO EXÍLIO


Introdução

O título acima retrata uma imponência um tanto quanto falsa. Não haverá aqui qualquer relato acerca de epopéias de exilados políticos devido a uma ditadura acontecida em algum país, em alguma época remota. Trata-se, na verdade, de um manuscrito feito um estagiário de um Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva (NPOR) do Exército Brasileiro. Trata-se de uma adaptação do texto original, com nomes e locais modificados para preservar a privacidade das pessoas e das idéias. O manuscrito foi escrito durante as horas de folga, durante um mês de estágio e internato no 54º GAC (Grupo de Artilharia de Campanha), na cidade de Ijuí, Rio Grande do Sul.
O autor do manuscrito nos revela aqui memórias e impressões que foram sendo captadas no decurso do tempo. O estágio foi o ponto culminante de um ano inteiro de serviço militar obrigatório. Obrigatório mesmo, pois apesar dele ratificar, por diversas vezes, sua intenção em não realizá-lo, foi-lhe imposto com mão-de-ferro. Vislumbra-se, ao final, que a resignação deu margem a muita inconformidade também e que, apesar dos pesares, o sofrimento sempre traz algum tipo de amadurecimento, de aprendizado da vida.


I – A Chegada

A viagem de Santa Maria até Ijuí consome, de ônibus, por volta de três horas. Saímos, eu e mais três colegas de estágio, às 9 horas da manhã de domingo, dia 2 de fevereiro de 2002. O ônibus estava vazio e este vácuo contrapunha-se aos nossos pensamentos, repletos de expectativas e preocupações.
Paramos em Júlio de Castilhos e Cruz Alta de chegarmos a Ijuí. Na rodoviária foi fácil encontrarmos o caminho do quartel – por sinal o único da cidade – denominado 54º GAC. O quartel estava fincado num dos pontos mais altos da cidade. A distância era longa e as mochilas pesavam nos ombros, durante a subida, como um fardo pesado, como a cruz de Cristo.
Do quartel a vista era panorâmica de toda a cidade. A visão do Corpo da Guarda, protegido por cavaletes de aço que dificultavam a passagem de carros, dava uma aparência de presídio àquela sóbria construção. Para acentuar nossa aversão à esta grotesca cena a chuva precipitava-se a cada instante com maior intensidade, sem se importar com os nossos lamentos.
A chuva prolongou-se até segunda-feira e nós terminamos o domingo contemplando-a pela janela do alojamento dos oficiais.


II – O Primeiro Dia

O grande problema a enfrentar era a falta de fardas para mim e outro colega. Além disso, alguns outros estavam com fardas camufladas – devido à mudança que estava começando a ocorrer – mas que iriam precisar da farda antiga verde-oliva já que o cronograma para a troca estava atrasado.
No período da tarde consegui uma farda usada e alguns outros complementos e, com a diminuição da chuva, já tive a oportunidade de ministrar uma sessão de ordem unida (um dos encargos de um aspirante-a-oficial no início do ano) e que consiste em fazer os recrutas marcharem, obedecendo à comandos dados em voz alta pelo comandante da bateria, tais como “Aaaalto!”,”Meia-voooolta voool-ver!”, etc. E ainda, após isso, acompanhar outra instrução de educação física com os conscritos.
Pude perceber uma coisa com clareza: o pavor dos soldados recém-incorporados, que me causava certa compaixão, pois eu estava a participar de atitudes que muito me revoltaram no ano anterior e que, agora, era obrigado a repetir perante outros pobres coitados. Estava a aliviar meus recalques em cima de outros e estava sendo executor de atitudes que tanto reprovava. Infelizmente vejo que na vida não podemos fazer apenas a nossa vontade. Vivemos numa coletividade, uma sociedade que nos impõe, muitas vezes, obrigações que nos parecem absurdas, mas que são impostas com mão-de-ferro. Não temos como recusar. Nestes momentos o mais importante é dizer para si mesmo que a vida é um eterno aprendizado e que em qualquer lugar e em qualquer atividade estamos a aprender algo. E aprender é inerente ao ser humano.


III – O Tipo Humano Apropriado à Vida Militar

Nestes primeiros dias percebi as atitudes relativas à personalidade mais adequada à vida castrense. Deste tipo de pessoa pode-se dizer que é imprescindível que seja sarcástica, com uma ironia que chega à morbidez. Por quê? Simples. O comandante de qualquer fração de tropa num quartel precisa gostar de gritar com muita ira com os soldados, impondo o respeito pela humilhação, pelas piadas sarcásticas dirigidas individual ou coletivamente. Pode-se até pensar que isso não é necessário, mas eu digo que é indispensável. Aquele que não é assim não terá como gostar de uma vida militar. Que outro atrativo há além dessa falsa impressão de superioridade? Somente o monetário, e este, todos sabem, não é fator para motivar uma profissão bem sucedida e feliz.
Outra qualidade é ser presunçoso. Afinal, um superior deve agir como se fosse onipotente. Sendo assim deve fazer valer sua vontade mesmo que tenha dúvidas sobre ela. Podem-se ver claramente estas personalidades estampadas na figura do alto comando do Exército, quando alguma fraude ou irregularidade surge. A velha atitude prepotente e presunçosa toma forma, onde tudo e todos estão armando uma campanha de “depreciação” contra as Forças Armadas. E este atitude é incutida ao próprio caráter daquele que entra numa escola de formação do Exército. Se forem analisados os dois fatos eles diferem apenas de escalão, mas são totalmente idênticos.


IV – O Nosso Alojamento para Definir Quem Somos

Ao todo somos aqui nove aspirantes-a-oficial da Reserva, exilados, muitos a treinar e aprender uma profissão que não escolheram. São sete que fizeram o NPOR comigo, na Artilharia, mais um de Intendência. O alojamento é uma sala com aproximadamente 35m2. É um alojamento padrão, com beliches circundados por armários, uns de metal e outros, na parede do lado esquerdo, de madeira, mais antigos. No mais a cor predominante, como sempre, é o verde-oliva. Eu durmo (e escrevo como faço agora) na parte de cima do último beliche à direita. Embaixo está o ASP ALMIR, natural de Três de Maio. Ele faz administração em Panambi e pretende conseguir uma vaga como tenente temporário. Ao meu lado fica o ASP DEMARTINI que é o mais louco daqui. Ultimamente tem feito uso da autoflagelação com o cordão da persiana da janela, gritando quando menos se espera “Ninguém sabe NAAADAAAA!”, fruto da sua indignação por estar aqui. Ele estuda comunicação na FURB e odeia o Exército assim como eu e a maioria aqui. A cama embaixo da dele está vazia. Na minha frente está o ASP CARDOSO que é de Erechim e está querendo uma vaga para poder casar (coitado, é mais louco do que o DEMARTINI!!!). Embaixo da cama dele está o ASP CASARIN. Ele é de Santa Maria e faz Filosofia na UFSM (entrou um ano antes do que eu). É uma daquelas “peças raras”, pois está sempre pronto para largar qualquer observação hilária ou bobagem completa. As camas na minha diagonal à direita abrigam, em cima o ASP MARQUES e, embaixo, o ASP SANTOS, ambos de Santiago, e também ambos sem uma definição da vida profissional no momento. O ASP MARQUES não passou no vestibular este ano e pretende conseguir um emprego para ocupar o ano e partir para uma nova tentativa, ano que vem. O mesmo pode-se dizer do ASP SANTOS que vai tentar ano que vem novamente uma vaga para Direito na UFSM e, enquanto isso vai ficar trabalhando na fruteira que o pai dele possui em Cachoeira do Sul. E, por fim, na última cama, em cima, está o ASP RODOLFO, que veio de Porto Alegre, onde prestou o serviço militar em Intendência, que é a divisão do Exército responsável pelas provisões de alimentação para os quartéis, na paz e na guerra. Ele faz Direito na UFRGS e parece que também não quer voltar para a vida castrense depois do estágio. Embaixo está o ASP SILVEIRA, que é de Santo Antônio da Patrulha e estuda em Santo Ângelo.
Posso dizer que a convivência é boa. Todos são amigos, alguns mais outros menos, mas o respeito impera e é isto o mais importante para que se tenha paz no convívio entre nove homens entre quatro paredes, num internato atípico.


V – A Intoxição Provoca Mil Penúrias

A alimentação aqui é um capítulo à parte: simplesmente destrói e aniquila qualquer ser humano. O exagero nas frituras, o suco e a sobremesa artificiais, o arroz branco, o excesso de carne e o uso indiscriminado de açúcar e sal refinados, tudo vai contra qualquer possibilidade de busca de um equilíbrio neste lugar que já é, por si só, tão desequilibrante.
Nos primeiros dias senti claramente uma dor de cabeça, uma moleza e torpor que não me eram comuns. Após uma semana a dor de cabeça começou a ser aplacada pela própria insistência no erro e somente o torpor após as refeições persistia como inabalável aviso. Nem sei porque escrevo isso, se no meu estado sou capaz de não conseguir reproduzir com fiel exatidão o quadro que pinto da minha situação.


VI – Afinal, Qual a Causa da Revolta?

Che Guevara foi um revolucionário de grande destaque na história latino-americana. Será que ele, alguma vez, perguntou-se o porquê da revolta? Penso que sim, afinal é normal analisar a finalidade de seus próprios atos. E então o que teria ele pensado? Presumo que nas várias etapas de sua vida tivesse tido diferentes concepções sobre a revolta. Por isto não estou a querer lançar verdades, tanto que presumo que minha tese atual (que na verdade é um pensamento vago demais para ser chamado assim) não é algo definitivo. Afinal, à medida que superamos diversas etapas de nossas vidas, sentimos a necessidade de revermos os nossos conceitos sobre os diversos assuntos a que nos propomos divagar. Um pensamento que li algum tempo atrás traduz com sublime exatidão o que quero dizer: “As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras” (Friedrich Nietzsche).
Atualmente penso que a revolta é algo falso. O conceito pré-fabricado é de que a revolta surge da insubordinação a regras pré-estabelecidas, mas hoje não mais concordo com isso. A revolta dita deste modo é elegante, é pomposa, mas é maculada pelo vazio. Os jovens são os que mais bradam seus estereótipos de revoltosos quando, na verdade, estamos sempre presos pelos laços da coletividade. Laços que impedem qualquer possibilidade de mudança de atitude. Jovens revoltados são tão verdadeiros como atores num palco. Interpretam papéis que a coletividade os impõe e transforma-os assim em ledos fantoches.
A revolta surge realmente quando uma atitude inesperada, não estipulada, é encenada. Então o grupo é quem se revolta contra aquele fantoche que quer cortar as cordas que o prendem e agir livremente. Pobre coletividade que têm garras de aço. Prende todos dentro da mesma redoma da “mesmice-coletiva”. Entregue-se à massificação e viva tranqüilo essa sua vidinha sem sentido. A ignorância sobrevive graças ao poder exercido pela imagem do indivíduo perante a sociedade.


VII – Hierarquia... Quem Sabe Usá-la?

Se fôssemos definir uma regra para a delegação de hierarquia poderia se levar em consideração dois fatores: o conhecimento e a idade. E, nesse ponto, percebemos que a visão militar da hierarquia não se desviou totalmente de uma concepção ideal. Realmente perante Deus todos nós fomos criados à sua imagem e semelhança e então somos todos iguais. Porém, devido a fatores diversos, chegamos, nos dias atuais, a uma situação onde poucos têm alcance às fontes de conhecimento e assim, estes poucos, e diferentes graus, elevam-se acima da maioria. A hierarquia surge neste ponto. E neste ponto surge com ela o uso presunçoso do poder gerado por este forma de organização. O uso indiscriminado sempre gerou o vício e o vício sempre gerou um sentimento de necessidade arraigada do fruto do vício.
Nos ambientes onde a hierarquia é usada indiscriminadamente, os elementos fracos de caráter contraíram o vício pela hierarquia. E este vício faz com que se julguem superiores sempre. Eles estão embriagados pelo sentimento de luxúria do poder. Sentem-se donos de super-poderes que os tornam capazes de fazer qualquer coisa melhor do que aqueles que foram julgados inferiores a ele. Coitados, estão cegos pelo poder. É ridículo julgar alguém superior porque cursou o ensino médio e outro não. Há, neste caso, apenas diferentes conhecimentos. Se o que não estudou estava a plantar arroz, milho ou outra cultura qualquer, o seu conhecimento nesta atividade é superior ao outro. Como aceitar então aqueles que se julgam sempre melhores porque alguma lei humana – digna de toda e qualquer desconfiança – disse que o seu conhecimento pesou mais que o de outros?


VIII – O Feriado de Monte Castelo

Se a descrição a seguir fosse um roteiro de teatro ou de algum filme com certeza seria um épico grandioso: embarcações alemãs afundam covardemente navios comerciais dentro do mar territorial brasileiro. A causa? Ora, um vilão tomado pelo demônio quer dominar o mundo, apesar de estar a reconstruir seu país depois de uma espoliação sem comparação, ocorrida ao final da Primeira Guerra Mundial. Além disso, ele está sendo hostilizado lá bem perto das suas fronteiras com a Polônia (certamente é um enredo de ficção...).
O orgulho nacional, porém, já foi irremediavelmente ferido, e só nos resta mandar mais de 25 mil homens, entre eles jovens “cegos” pela vontade de defender a Pátria. Valoroso ideal! E então esta Força Expedicionária é anexada a um Batalhão de Infantaria dos Estados Unidos, para servir de escudo protetor nas geladas montanhas do norte da Itália. É exatamente isso! De repente, o filme épico se transforma no mais puro filme de terror. Jovens embriagados pela mentira forjada por gananciosos e inescrupulosos detentores do poderio econômico mundial são jogados na vala comum dos “inocentes-úteis”. E hoje os quartéis comemoram os grandes feitos do Exército brasileiro na 2ª Guerra Mundial e até apresentam valorosos ex-combatentes que voltaram com vida, certamente porque nunca empunharam um inócuo fuzil e não tiveram assim um braço, uma perna ou outra parte do corpo mutilada, antes de morrerem por causa do frio ou pelas frias balas das armas inimigas.
E então a grande cena final, a gloriosa tomada de Monte Castelo – fortificada posição de defesa contra o avanço aliado em direção à Alemanha – estaríamos a bordo de um avião americano de reconhecimento. Lá embaixo pode-se ver o monte Castelo, todo branco pela neve do rigoroso inverno dos Alpes que ali, no norte da Itália, começam a tomar forma. O monte é protegido por farto armamento e soldados entrincheirados em volta da grande muralha são apenas simplório aviso da segurança da fortificação. O ataque será maciço e o comandante das tropas americanas já tem toda a ofensiva esquematizada.
Sobre uma mesa mal-iluminada, na tenda de comando, mostra uma carta topográfica da Itália. Com o auxílio de uma varinha assinala a posição das tropas amigas e a ação conjunta que será realizada:
- Tudo muito simples... – diz ele, com a voz embargada. – força brasileira atacará o inimigo pela frente enquanto isso...
- Mas General... – era o coronel comandante da Força Expedicionária Brasileira que intervinha. – Isso será suicídio! Seria mais prudente usarmos o flanco direito e...
- No, no, no! – O General sabia o que dizia. – Exército Brasileiro com certeza obterá êxito pois estaremos apoiando vocês pelo flanco esquerdo, tomando o posto de Monte Belvedere.
- Mas General, este posto só tem dois sentinelas e não...
- Será o impossível que você não entende meu caro coronel: deste ponto apoiaremos o seu exército e então a ação se efetivará totalmente vitoriosa! (E foi mais ou menos assim...).
No quadro final vemos a encosta, antes branca, agora coberta de corpos onde o verde-oliva das fardas contrapõe-se com traços do mais sanguíneo vermelho. Há soldados mortos, há soldados mutilados agonizantes, há soldados que choram e há soldados que gemem. Há soldados alemães, italianos e brasileiros. Mortos ou mutilados. Armados ou não. Com certeza os que têm ainda um sopro de vida pensam com orgulho que estão a dar a vida pela Pátria. Mas eis que lá, à esquerda, surge uma tropa. Vão em direção à fortificação militar, agora mais um cemitério do que um quartel. Uma cena hedionda, digna das profundezas do inferno. A câmera aproxima-se e vemos à frente uma bandeira dos Estados Unidos da América. Mas que pena, não é mesmo? Eles se atrasaram e não tiveram a oportunidade de participar de tão grandiosa batalha. Mas assim mesmo dirigem-se ao mastro, um grande mastro bem no centro do quartel. Fazem descer a esfarrapada bandeira nazista e o pavilhão americano é hasteado com pompa e admiração de todos. Um soldado brasileiro sem as duas pernas e gemendo e contorcendo-se e frio e de dor ainda levanta a cabeça e presta continência. The End!


IX – O Quartel É Fascinante: Deixa a Gente Ignorante Fascinada

Quando servir no Exército torna-se algo atrativo penso haver dois motivos somente: um seria a curiosidade pela alta tecnologia em armamentos que, devido a fatores incutidos na criança que se fascina por brincadeiras com armas durante sua infância e quando jovens acabam por serem atraídos para as armas de guerra. E o outro fator seria uma busca simplória por segurança, comida, teto e algum dinheiro para a própria sobrevivência. Não é preciso ser especialista em sociologia ou psicologia para deduzir que o jovem brasileiro busca no quartel, principalmente, um padrão de vida melhor. Agora imagine a situação em que ele se encontrava antes, já que uma função de soldado não é tão bem remunerada assim. E então não é de se admirar de frases tipo: “porque nóis tamo aqui para defender a Pátria”, dita por um recruta quando perguntado da validade da lealdade na convivência no quartel. Concordo absolutamente com o valor da lealdade no caráter de qualquer pessoa. Porém na justificativa dada percebe-se como a propaganda ilude os ignorantes. Jovens que não tiveram a oportunidade de estudar, até que desenvolvessem um senso crítico, tornam-se “papagaios” de frases feitas, lidas ou ouvidas na TV ou qualquer outro meio de comunicação de massa. E é esse povo marginalizado que vem aos quartéis, alguns iludidos outros famintos, mas todos enganados por vil embuste dos poderosos. “Nos quartéis lhes ensinam antigas lições/De morrer pela Pátria e viver sem razões.” Geraldo Vandré traduziu com maestria na canção o destino daqueles que buscam uma vida melhor no Exército. Talvez até escapem de morrer de fome, mas serão sempre espectros fugazes no caminho da humanidade. Bertold Brecht captou o fim dos quartéis porque eram formados por homens, e estes homens sabiam pensar. Mas alguns outros homens inescrupulosos, mas visionários, trataram de impedir que estes homens subjugados chegassem um dia a pensar. E conseguiram. Agora dão risadas da indignação do pobre Bertold. Mas eis que Shakespeare coloca a mão no ombro daquele Brecht indignado e sussurra-lhe no ouvido: “Penso, logo existo; se estes homens não o fazem, logo serão sugados pelo vácuo da ignorância”.


X – Como Tirar Suco de Pedra

A história aqui contada tratou de muitos aspectos, fatos, personalidades e opiniões que tentaram mostrar o absurdo da vida militar. Se o objetivo foi alcançado é algo relativo. Porém torna-se imperativo buscar fatores que possam ser de grande valia àqueles que viveram temporariamente um ambiente verde-oliva. Afinal, muitos enfrentaram e assumiram algo pelo qual não havia escolhido de livre e espontânea vontade, e nisso diferem daqueles que assim o fizeram e escolheram uma vida com um ideal tão pequeno. Digo ideal pequeno porque, exclusive toda a instrução, toda a preparação física, todo o conhecimento dado ao soldado, específico ou de vida, nos anos que se repetem o ideal maior do militar é a Guerra. Logra-se aí descobrir o absurdo de uma vida voltada para a destruição. Não importa que se afirme que tudo tem o seu valor. Como, por exemplo, dizer que a pessoa aprende a superar obstáculos no quartel. Obstáculos que antes achava intransponíveis e passa a conhecer seus limites, podendo isso refletir de modo positivo na sua vida. Tudo certo! É uma contribuição digna de aplauso, mas o problema encerra-se no ideal. Todo o homem que busca ser feliz na vida precisa de um ideal delineado e de preferência infinito. E, no caso como é retratado acima, o que se vê é uma clara indefinição de ideal que trará tão somente a infelicidade e a fuga.
Aqueles, porém, que enxergarem esta contradição poderão sentir-se felizes pela experiência que tiveram. Viveram sacrifícios, revoltaram-se, humilharam-se, resignaram-se, mas superaram desafios e descobriram forças adormecidas no fundo do seu ser. Sabem que precisam de um ideal construtivo e descobrirão, no momento certo, como usar das aptidões desenvolvidas durante este tempo. São inteligentes para separar o joio do trigo e não estão bitolados a encenar a guerra por toda a vida. Estes que assim pensarem terão grandes chances de viverem a vida como ela deve ser: cheia de dificuldades que precisam ser transformadas em alegrias pela superação e força de vontade.
Hoje termino de escrever meu manuscrito, chove forte lá fora e já se passaram 23 dias dentro de um quartel, mas sei que a alegria de ter superado estes dias e os da última semana que restam, será de um gáudio grandioso, uma alegria indescritível, e sei também que já tirei muito “suco desta pedra” para seguir meu caminho, tortuoso, vida afora.